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segunda-feira, 1 de novembro de 2010


COTIDIANO & MISTÉRIO
Frei Betto



Roubaram-nos a alma, sequestraram-nos a esperança, violaram a utopia. Ora, por que sonhar em mudar o Brasil e o mundo se já podemos trocar de canal; esquecer as dores comentando alheios desamores; e, na ausência de Rimbaud, divertir-nos com o último clipe de Michael Jackson?
De Rimbaud a Michael Jackson



O Brasil é um caso raro de nação desmemorizada. As elites dominantes ensinaram-nos a conhecer melhor os heróis da Revolução Francesa do que os combatentes da Conspiração Mineira (inadequadamente qualificada de Inconfidência - o que faz supor que todos deram com a língua nos dentes, como o fez Silvério dos Reis). Os índios são vistos como peças folclóricas do zoológico amazônico e os escravos, como meras vítimas dos abusos de senhores que acresciam, à exploração, os castigos físicos. Ainda agora conhecemos melhor as viagens de Marco Pólo do que a epopéia política da Coluna Prestes. E ao encerrar o ciclo militar iniciado em 1964, trataram de avisar que não se admitiria "revanchismo" - leiam-se: justiça e memória.
Frei Tito, memórias proibidas



Na natureza, todos os mamíferos curtem carinhosamente suas crias. Já répteis, como as serpentes, geram como quem cospe, indiferentes ao destino de seus filhos. Em nossa estrutura cerebral reside tembém uma cascavel. Se os pais de desgostam na frente dos filhos, agridem-se em palavras e gestos, transformam a casa num lugar insano, como esperar que os filhos cresçam felizes? Pais que não tocam fisicamente seus filhos, têm pudor de transmitir-lhes carinho ou nunca têm tempo para curti-los, levá-los a passear e se interessar pelo microuniverso deles, podem estar fabricando um assassino em potencial.
Como (não) educar um assassino em casa



De modo sinestésico, a TV evoca todos os nossos sentidos. E, de certo modo, escraviza. Obriga-nos a ficar sentados, solícitos, obedientes, pacientes, atentos, assim como não somos capazes de fazê-lo para ouvir o que o filho tem a dizer, o que o vizinho quer contar, o que a mulher ou o marido precisam falar. A TV não admite o diálogo e, em compensação, não reage quando lhe damos as costas ou cegamos a sua tela.
Televício



Somos incorrigivelmente vorazes. Queremos processar o máximo de informações no mínimo de tempo. Desafiamos, a cada momento, as barreiras do espaço. Ansiamos por estar lá - não no caminho - e, por isso, afundamos o pé no acelerador do carro possante e afugentamos os pedestres, disputando com o motorista ao lado um palmo de asfalto, como se à frente não houvesse sinais vermelhos contrários à nossa sofreguidão. Reduzimos as distâncias com telefones celulares e operações digitais no computador. Ainda que no trânsito ou no aeroporto, no trabalho ou no clube, a "coleira eletrônica" impede que nos percam de vista. Entre uma marcha e outra, uma flexão abdominal e outra, uma opinião e outra no trabalho, controlamos os filhos, as aplicações financeiras, os negócios geograficamente distantes. Como Prometeu, queremos arrebatar o fogo dos deuses, fazendo de conta que não somos frágeis e mortais.

Só não descobrimos o elixir da felicidade. Por que nenhuma empresa vende o que mais procuramos, o amor? Ora, talvez possamos deixar de pagar, com o sacrifício da própria vida, o preço letal dessa busca, se abraçarmos os sonhos de Kepler: a vida campestre, a roda de amigos, o coro de anjos numa igreja e a melodia das estrelas.
Os sonhos de Kepler



Sim, a memória se apaga quando não se ama.

Mas, Hiroshima é muito pequena comparada à morte anual, por subnutrição, de cerca de um milhão de crianças, na América Latina, com menos de cinco anos de idade, das quais o Brasil enterra cerca de 300 mil. A bomba, agora, tem outro nome: reajuste monetário. O piloto, o FMI. O avião, a insensibilidade social de nossos governantes, que nunca viram uma mãe levar ao cemitério um "anjinho" torturado pela fome.
Hiroshima, desamor



Nenhum animal teme o seu semelhante. Exceto o bicho homem e a mulher. Justamente porque a elite que manda neste país nos impõe a dessemelhança. O objetivo é o lucro e não uma nação saudável, culta e soberana. O que importa é especular, e não produzir. Emprego vira loteria, e salário, esmola.
Viver perigosamente



"O poder é afrodisíaco?", indagou o repórter Ricardo Gontijo ao general Geisel, quando este ocupava a Presidência da República. O carro partiu sem que houvesse resposta. Mas seu sucessor não temeu reconhecer que "o demônio que assedia o poder é pródigo em tentações". Lord Acton foi mais incisivo. Declarou que "todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente."
É injusto qualificar de corruptos todos que dispõem de uma parcela de poder. Mas não há dúvida de que o poder transtorna, em qualquer escala: chefes, gerentes, diretores, dirigentes sindicais, deputados ou bispos. São Paulo diria que ele atiça a concupiscência. Torna a pessoa apegada aos prazeres e facilidades oferecidas a quem ocupa posição de destaque.
Para muitos, o poder é a suprema ambição. É a perversa maneira de se comparar a Deus. Vide os políticos que gastam somas milionárias em campanhas eleitorais e, mesmo derrotados, voltam à cena, como se a sede de poder fosse proporcional à fortuna que dilapidam. Há homens que, fora do poder, sentem-se terrivelmente humilhados, expulsos do Olimpo dos deuses. Como é difícil voltar ao que se era! Vargas preferiu meter uma bala no coração a ver-se destituído de poder.
Malgrado as intenções, a vida se tece em ações. Pouco valem as intenções de quem jura que, "chegando lá não serei como os outros". Será sim, salvo honrosas exceções. Pois o poder atrai dinheiro e opera na pessoa uma mudança de lugar social e cultural. Ela se vê cercada de bajuladores, recebe convites para homenagens, ganha presentes e, sobretudo, passa a dispor de uma infra-estrutura que a reveste de uma aura especial. Troca de guarda-roupa, de casa, de amigos e de mulher. Aos olhos do comum dos mortais, aquele senhor possui as chaves da felicidade alheia. Tem o poder de aprovar projetos, liberar verbas, autorizar obras, permitir viagens, distribuir cargos, promover pessoas, conceder bolsas, e transformar seus gestos em fatos políticos.
O poder reduz a distância entre o desejável e o possível. Quanto maior o poder, menor essa distância. Um governador ou um ministro pode, no mesmo dia, graças à função que ocupa - e às custas do contribuinte - almoçar em Brasília, jantar em São Paulo e dormir no Rio, convencido de que suas conversas e conchavos direcionam o rumo da História...
Quem se apega ao poder não suporta crítica, que mina sua auto-imagem e exibe suas contradições aos olhos de outrem. Daí porque se isola, fecha-se num círculo hermético no qual só têm acesso os que cumprem suas ordens, dizem "amém" às suas idéias ou, ainda que críticos, se calam coniventes, pois tendo também suas ambições não querem ser rifados por quem possui mais poder que eles. Assim, cria-se uma cumplicidade tática. Temem apenas que certa imprensa saiba o que fazem. No entanto, agem como se copeiros, garçons, motoristas, seguranças e empregados não tivessem olhos, cabeças, ouvidos, bocas, parentes, vizinhos e amigos...
Tudo se agrava, porém, quando o poder institucional vincula-se ao poder marginal, e deputados, governadores e ministros locupletam-se com bicheiros, traficantes e torturadores, fiéis ao adágio de que "é dando que se recebe". Então, as letras trocam de lugar - o poder fica podre.
Poder



Como todo mineiro é um pouco filósofo, há um mistério sobre o qual venho há anos especulando: "o que é ser mineiro?"
Das reflexões e inflexões que extraí sobre a mineirice, muitas delas colhidas em filosóficas inscrições de rótulos de cachaça e quinquilharias de beira de estrada, eis as conclusões prévias e provisórias, sujeitas a chuvas e trovoadas, a que cheguei:

Ser mineiro é dormir no chão para não cair da cama; usar sapatos de borracha para não dar esmola a cego; sorrir sem mostrar os dentes; tomar café ralo e esconder dinheiro grosso. É desconfiar até dos próprios pensamentos e não dar adeus para evitar abrir a mão. Mineiro pede emprestado para disfarçar a fartura. Se é rico, compra carro do ano e manda pôr meia sola em sapato usado. Mineiro vive pobre para morrer rico.
Mineiro não é contra nem a favor; antes, pelo contrário.
Mineiro fala de desgraça, doença e morte, e vive como quem se julga eterno. Chega na estação antes de colocarem os trilhos, para não perder o trem. Relógio de mineiro é enfeite. Pontual para chegar, o mineiro nunca tem hora para sair. A diferença entre o suíço e o mineiro é que o primeiro chega na hora. O mineiro chega antes.
O bom mineiro não laça boi com embira; não dá rasteira em pé de vento; não pisa no escuro; não anda no molhado;  não estica conversa com estranhos; só acredita em fumaça quando vê fogo; pede no açougue lombinho francês; só arrisca quando tem certeza e não troca um pássaro na mão por dois voando.
Mineiro fala de política como se só ele entendesse do assunto; finge que acredita nas autoridades e conspira contra o governo; faz oposição sem granjear inimigos; gera filhos para virar compadre de político; foge da luz do sol por desconfiar da própria sombra; vive entre montanhas e sonha com o mar; viaja mundo para comer, do outra lado do planeta, um tutu de feijão com couve picada.
Ser mineiro é venerar o passado como relíquia e falar do futuro como utopia; curtir saudades na aguardente e paixão em serenatas; dormir com um olho fechado e outro aberto: acender vela à santa e, por via das dúvidas, não conjurar o diabo.
Ser mineiro é fazer a pergunta já sabendo a resposta. É ter orgulho de ser humilde. É bancar a raposa e ainda insistir em tomar conta do galinheiro.
Mineiro fica em cima do muro, não por imparcialidade, mas para poder ver melhor os dois lados. Cabeça-dura, o mineiro tem o coração mole. Acredita mais no fascínio da simpatia que no poder das idéias.
Mineiro é isso, sô! Come as sílabas para não morrer pela boca, Fala manso para quebrar as resistências do interlocutor. Sonega letras para economizar palavras. De vossa mercê, passa pra vossemecê, vossência, vosmecê, você, ocê, cê e, num demora muito, usará só o acento circunflexo! Mineiro fala um dialeto que só outro mineiro entende, como aquele sujeito que, à beira do fogão de lenha, ensinava o outro a fazer café. Fervida a água, o aprendiz indagou: "Pó pô pó?" E o outro respondeu: "Pó pô, pô."
Ser mineiro é saber criar bois, filhos e versos. É ir ao teatro, não para ver, mas para ser visto. É frequentar igreja para fingir piedade; rir antes de contar a piada e chorar com a desgraça alheia.
Mineiro adora sala de visitas encerada e trancada, na esperança de retorno do rei. Avarento, não lê o jornal de uma só vez para não gastar as letras, e ainda guarda para o dia seguinte para poder ter notícias. Mineiro não lê, passa aos olhos. Não fala ao telefone, dá recado.
Praia de mineiro é barzinho, restaurante, balcão de armazém e cerca de curral. Ali a língua rola solta na conversa mole, como se o tempo fosse eterno. Certo mesmo é que o momento é terno.
Ser mineiro é ajoelhar na igreja para ver melhor as pernas da viúva, frequentar batizado para pedir votos e ir a casamentos para exibir roupa nova.
Mineiro vai a enterro para conferir quem continua vivo. Nunca sabe o que dizer aos parentes do falecido, mas fica horas na fila de cumprimentos para marcar presença. Leva lenço no bolso para o caso de ter de enxugar as lágrimas da família. Não manda flores porque desconfia que a flora não cumpre o trato e embolsa a grana.
Ser mineiro é esbanjar tolerância para mendigar afeto. É proferir definições sem se definir. É contar casos sem falar de si próprio. Mineiro é feito pedra preciosa: visto sem atenção não revela o valor que tem.
Mineiro é capaz de falar horas seguidas sem dizer nada. Esconde o jogo para ganhar a partida. Cumprimenta com mão mole para escapar do aperto e acredita que a fruta do vizinho é sempre mais gostosa.
Mineiro age com a esperteza das serpentes, mas se veste com a simplicidade das pombas, e encobre suas contradições com o manto fictício da cordialidade.
Mineiro é como angu, só fica no ponto quando se mexe com ele. Desconfiado, retira o dinheiro do banco, conta e torna a depositar.
Ser mineiro é fazer cara feia e rir com o coração; andar com guarda chuva para disfarçar a bengala; fumar cigarro de palha para espantar mosquitos; mascar fumo para amaciar a dentadura.
Mineiro sabe quantas pernas tem a cobra; escova os dentes do alho, teme rasteira de pé de mesa; toma café ralo para enxergar o fundo da caneca e, por vida das dúvidas, põe água e alpiste para o cuco.
Ser mineiro é fingir que não sabe o que bem se conhece. Mineiro que não reza não se preza. Religioso, na crendice mineira há lugar para todos: o Cujo e a mula-sem-cabeça, assombrações e fantasmas; duendes e extra-terrestres. Pacífico, mineiro dá um boi para não entrar na briga e a boiada para continuar de fora. Mas, se pisam no calo do mineiro, ele conjura, te esconjura, jurado e juramentado no sangue de Tiradentes.
"Minas Gerais é muitas", como disse Guimarões Rosa. É fogão de lenha e comida preparada na panela de pedra sabão; é turmalina e esmeralda; é tropa de burro e rios indolentes chorando a caminho do mar; é sino de igreja e tropeiros mourejando gado sob a tarde incendiada pelo hálito da noite. Minas é Mantiqueira e serrado, é Aleijadinho e Amílcar de Castro, é Drummond e Milton Nascimento, é pão de queijo e broa de fubá. Minas é uma mulher de ancas firmes e seios fartos, sensual nas curvas, dócil no trato, barroca no estilo e envolta em brocados, ostentando camafeus. Minas é saborosamente mágica.
Mineiro sai de Minas, mas Minas não sai da gente. Fica uma dor forte, funda, farta e fértil, tão impoderável como o amor místico, onde o coração lateja embevecido por inefável paixão.
Ave, Minas! Batizada Gerais, és uma terra muito singular.
Ser mineiro



Na esquina da História, roubaram os nossos sonhos e, agora, estamos mais amargos.

Reclamamos, criticamos, xingamos, mas não reagimos. Perdemos até mesmo a memória da piada, o humor como resistência cultural. Reduzem o nosso dinheiro e a nossa cidadania; arrocham o nosso salário e diminuem as nossas possibilidades de vida; e ainda achamos que sempre foi e será assim. Esperamos um milagre dos céus, que venha em socorro de nossa covardia. O importante é sobreviver. Para quê? Para manter o emprego, ver novela colorida à noite, comer pizza aos sábados, comprar um CD e mandar as crianças à Disneylândia.

Uns cruzam os braços, crédulos de que serão os únicos a se salvar, sem se dar contar que as grades que erguem em suas janelas já estão cimentadas em seu coração. Outros sabem que, ou nos salvamos todos, ou não se salva ninguém.
Apelo à indignação



Enquanto o sistema nos puxa pelo lado de fora - modas, status, funções de poder - algo mais profundo em nós mesmos nos induz ao lado de dentro: resgatar a capacidade de amar, reaprender a ternura, fitar o semelhante em sua suprema dignidade humana.

Pode haver prazer na apropriação, alegria no encontro, júbilo numa boa surpresa. Porém, felicidade, como profundo deleite do espírito, só na intimidade amorosa, na oração sem imagens e palavras, na contemplação do belo, no acolhimento do ser querido, na entrega ao mistério, na eternização subjetiva de  um momento, n poesia de um toque, um gesto, uma palavra que traz em si plenitude.

Para nascer de novo, como disse Jesus a Nicodemos, não é preciso retornar ao ventre materno. Basta dar ouvidos è própria intuição, agir com humildade e sintonizar-se com o Transcendente. Na radical disposição de, daqui pra frente, não se deixar consumir como um mingau comido pelas bordas.
Renascer



É preciso saber enxergar um palmo além do chão, da parede, do teto ou mesmo do rosto à nossa frente. Tudo depende de nossa cabeça. Somos, como seres humanos, aquilo que está gravado em nossa mente - idéias, noções, fantasias, impressões. Se fomos educados acreditando que há raças superiores a outras ou nos deixamos convencer, pela publicidade, de que pilotar um carro a 300 km/h é mais nobre que lutar no combate à fome, então nossos atos serão regidos pelo racismo ou pelo culto aos ídolos do consumismo.

Vemos sem olhar, escutamos em ouvir, falamos sem medir o peso das palavras. A vida, como mistério, declina em nossa falta de sensibilidade.
Cotidiano & mistério



Enfrentar o desafio da criação de homens e mulhers novos é tão urgente, e revolucionário, quanto lutar por um mundo em que o homem não seja mais o lobo do homem. E no qual Jesus, o Homem Novo por excelência, possa fazer em nós sua morada.
Fome de Deus



A evocação da morte incomoda porque remete ao sentido da vida. Só assume morrer quem imprime à vida um sentido altruísta, que transcende a sua existência individual. Fora disso, a morte é brutal sonegação da vida.
Carnaval, cinzas & Modernidade


Deus é mais íntimo a nós do que nó a nós mesmos. Recolher-se ao silêncio interior é sempre um excelente ponto de partida. Para quem nunca fez essa viagem, a partida assusta, porque não nos é dado o roteiro, e a paisagem exterior tenta-nos a abandonar o trem. Se controlarmos "a louca da casa", a imaginação, logo o silêncio interior se faz Voz. Então, somos apresentados ao nosso verdadeiro Eu, que nos impele ao nós. E experimentamos inefável felicidade.
Pecados capitais & viagens interiores


E quem ama jamais se envergonha da pessoa amada.
Segredo de Polichinelo



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