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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Família é Prato Difícil de Preparar





É na cozinha que eu desembesto e solto todos os bichos. É na cozinha que eu viajo sem passaporte, sem bilhete, sem revista em aeroportos. As autoridades querem minhas digitais? Elas estão na massa do pão. Querem minha foto? Tenho várias, de frente e de lado com meus pais e irmãos e com os que vieram depois. Retratos falados - em voz alta, a família toda ao mesmo tempo. Destrambelhada família. Sagrada família...

Preciso me concentrar. É essencial. Por quê? Ora, que pergunta! Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é problema - principalmente no Natal e no Ano-Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é pra qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida - azeitona verde no palito – sempre arruma um jeito de nos ensinar e abrir o apetite.

O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano - quem diria? - solou endureceu, murchou antes do tempo. Este, o mais gordo e generoso, farto, abundante. Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente. E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero ou do grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também está cheirando alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família è prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou tristeza.

Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, essas especiarias - que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar - tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa.

Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora erada. O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe "Família à Oswaldo Aranha", "Família à Rossini", "Família à Belle Meunière ou "Família ao Molho Pardo" - em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria.

Família é afinidade, é "à Moda da Casa". E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras, apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada - seriam assim um tipo de "Família Diet", que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.

Há famílias, por exemplo, que levam muito tempo para serem preparadas. Fica aquela receita cheia de recomendações de se fazer assim ou assado - chatice! Outras, ao contrário, se fazem de repente, de uma hora para outra, por atração física incontrolável - quase sempre de noite. Você acorda de manhã, feliz da vida, e quando vai ver já está com a família feita. Por isso é bom saber a hora certa de abaixar o fogo. Já vi famílias abortadas por causa de gogo alto.

Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia-a-dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.

Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente, na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando acaba, nunca mais se repete.

(Do livro: O Arroz de Palma, Francisco Azevedo)

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